Fogo no circo

Quando eu era moleque, durante o regime militar, havia um xingamento que era a pior coisa de que se podia chamar alguém. Pior do que invocar qualidades íntimas de genitoras ou sugerir cavidades anatômicas para a inserção de objetos. Muito pior. Isso porque além do insulto, havia o medo de ser preso, levado embora, sumido. Afinal, a suspeita havia sido levantada. E a família já era automaticamente incluída. Ser chamado de "subversivo" era realmente o fim da picada. "Aquele moleque é um subversivo!", "Mais um subversivo foi preso ontem à noite...", "Meu Deus, isso só pode ser coisa de gente subversiva!". 

Na época, a preocupação do regime quanto a atividades subversivas era bem fundada. A subversão gera a desestabilização, que enfraquece as estruturas do estado. Expõe as fraquezas. Destrói a confiança e a tranqülidade. As grandes potências mundiais sabem muito bem disso e usam-na estrategicamente em maior escala, em diversas regiões do globo, para facilitar o controle político ou dominar mercados.

Veja o caso do Oriente Médio: vocês se lembram de como eram vilanizados os xiitas até pouco tempo? "Radicais suicidas", "fanáticos religiosos", "extremistas capazes de qualquer coisa", "assassinos bárbaros", e por aí a fora. Badaladíssimos nos noticiários da TV de todo o mundo (ocidental, bem entendido), "xiita" virou xingamento também. Eram os alvos preferidos do ódio americano.

Acontece que Saddam Hussein, ditador do Iraque, era sunita (minoria religiosa em seu país) e tratava os xiitas com mão de ferro, tão duramente quanto os curdos. Que são, aliás, uma etnia, querem mais é distância da briga e reivindicam independência para seu povo. Enfim -- Depois que o governo americano mandou invadir aquele país sob o pretexto de neutralizar um suposto arsenal de armas de destruição em massa e depôs seu ditador, colocaram no poder justamente... os xiitas.

Os antigos inimigos agora viraram amiguinhos? Não tão depressa: os xiitas iraquianos estão fragilizados, mas este não é o caso da maioria xiita do Irã - o Grande Inimigo Da Vez - e a ordem é desestabilizar, lembra? Então: para que fracasso maior do que o tal "processo de democratização" do Iraque, incentivado pelo tio Sam mas conduzido pelas novas autoridades xiitas iraquianas? E como perder a oportunidade de deixar os xiitas executarem o Saddam justo no primeiro dia do feriado sagrado de Eid Al-Adha, de sacrifício para os mulçumanos, quando a "ovelha é imolada e sua carne é dada aos famintos, quando se dá dinheiro aos pobres e brinquedos às crianças"?

Enquanto isso, na Palestina, onde Saddam Hussein ainda é lembrado como alguém que lutou contra Israel e venceu, o Irã dos xiitas é visto como quase tão culpado pela execução do ex-ditador quanto os americanos.

Isso é que é ser subversivo.